(texto com banda sonora, ler ouvindo a música)
A vida, tal como a morte, é infinita. A vida, tal como é vista pelas crianças, não acaba. Ter menos de dez anos é ser consciente do futuro que não vai chegar. Uma semana é um mundo de tempo, naqueles que têm menos de dez anos.
A vida, tal como a morte, deve então ser vista com o olhar de uma criança. Com o infinito por descobrir, com o porquê na ponta da língua, sem nunca, mas nunca deixá-lo escapar. Assim, pode ser que a morte não vença a vida. Pode ser que assim, a eventualidade eterna da morte fique, pelo menos, em pé de igualdade com a vida. Viver não é morrer. Viver é tal como a liberdade, um fim em si mesmo. Viver por viver, ser livre para viver, em última análise viver porque se é livre de viver.
Uma criança não sabe que as coisas acabam. O dia é interminável, um ano é longínquo como o Sol. Até esse, para uma criança, está mais perto que o fim.
No debate sobre o fim da vida, injustiça é a palavra de ordem. Nunca há mortes a tempo, em circunstâncias normais ou sequer que falham a pena. A toxicidade da morte está em saber que ela é maior que a vida. Por mais preenchida que esta seja será, invariavelmente, vencida. Então, só há uma maneira de rejeitar a morte. De colocá-la onde ela merece. Num buraco escondido, no pior sítio possível. Só a vida pode ganhar à morte. A vida, como uma criança de dez anos a vê, é superior à morte. A morte, até agora, é o fim. Não se sabe se vem alguma coisa após. Só se sabe que é o fim. Mas a vida, pelos olhos infantis, nunca acaba. Nesse vida perfeita, ninguém morre, nada acaba porque o tempo é longo. Não há velhos, há apenas mais velhos que nós. Não há doenças sem salvação, há apenas percalços que levam ao hospital. A infantilidade da vida permite uma autêntica rejeição da morte. Porque esta não merece mais.
Para uma criança, não interessa deus, não interessa a vida, muito menos a morte. Isto são coisas de desenhos animados. Na vida real de uma criança, o dia não acaba a dormir. A manhã seguinte não significa que passou um dia. Significou apenas isso. A manhã. E não é mais uma manhã. É a manhã que vai ajudar a desvendar mais um bocado da vida. A manhã enquanto princípio, não como continuação. O problema foi deixar de ter olhos de criança de dez anos. O problema foi começar a juntar as manhãs, contabilizando-as, quase como sabendo de antemão quantas manhãs ainda nos faltam.
Pois se viver é viver e por isso é maior que morrer que se viva. Que se possa viver, mas desta vez sabendo que a morte foi vencida em vida. E que o fim é apenas uma eventualidade que não merece ser respeitada. Deve ser contrariada, se possível insultada. Por apenas uma razão: porque faltou viver. Porque morrer interrompe a vida e a vida nunca acaba, ou nunca deveria. Há sempre tantas coisas por fazer.